JANELA DOS FUNDOS! (CUMPLICIDADE).

Tomando uma ducha vespertina, depois de uma manhã muito atribulada espiei pela fresta da janela para ver se a garoa havia cessado. Durante a manhã inteira tinha persistido uma chuva bem fininha e fria. Precisava dar uma passada no mercado, depois do banho. Dispensa vazia e fome não combinam! Estava com muita vontade de preparar uma sopa de legumes variados. Sem esquecer do salsão, lógico! Dá um gostinho incrível. Com a água quente, deliciosa, escorrendo sobre o corpo, numa sensação de muito aconchego, essa ideia da sopa quente deu água na boca! Decidi que iria deixar a preguiça de lado e corajosamente  enfrentaria o frio lá fora. Aproveitaria pra comprar um bom vinho também. “Me daria esse presente”! Com os sentidos envolvidos nesses pensamentos prazerosos, comecei a cantarolar a canção de sempre, no chuveiro. Tinha virado um hábito. “You are my love”! Estava me sentindo leve e feliz, apesar do cansaço da manhã.  Fechei os olhos e soltei a voz como há tempos não fazia. Fiquei um bom tempo cantando e me aquecendo naquela delícia de água. De repente me lembrei que Elisa, minha irmã, talvez viesse, naquela noite me entregar um livro que ela tinha me prometido. Abri os olhos e novamente olhei pela janela para conferir o tempo lá fora. Assim que espiei, percebi que, bem em frente a janela dos fundos de meu banheiro, havia um casal de velhinhos sentados de mãos dadas na sacada do outro apartamento. Estavam visivelmente felizes. Namorando do jeito deles. Curtiam a chuva fina e fria que ainda caia, protegidos em seu amor. Um beijinho aqui, outro ali. Dona Carmem e seu marido Douglas. Casados há longa data. Duas cabeças brancas bem juntinhas, lendo um mesmo livro sobre uma mesa meio alta. Inclinavam-se algumas vezes para enxergar melhor uma ou outra frase. De repente riam e trocavam algumas palavras e novamente se compenetravam na leitura. Sempre de mãos dadas, numa visível cumplicidade que só o tempo pode construir. Ainda sabiam como viver a  felicidade no casamento, apesar de seus oitenta e poucos anos de idade. Não sei explicar o porquê, mas aquela cena tocou meu coração no profundo. Relembrei Miguel, meu ex-marido. Poxa! Quando nos casamos esse era o meu sonho. Ficar junto dele até bem velhinha. A gente brincava que se um dos dois ficasse “gagá”, nem assim poderia haver separação. Um iria ter que cuidar com carinho do outro. Era um pacto de amor entre dois jovens sonhadores. Tanta paixão, meu Deus! Lembrei que ele dizia que gostava de todos os meus cheiros. Todos! Não suportava que eu usasse perfumes. Camuflava o meu aroma natural. A gente tinha tantas semelhanças de gostos. Magia e atração nos lençóis. Divergências também. Muitas! Não tive jogo de cintura pra segurar os conflitos. Imaturidade emocional é fogo! Me enganei. Fui insana quando conheci Fábio; rotulei de Deus alguém tão pequeno! Culpa da química explosiva! Os hormônios são traiçoeiros. Confundi com amor uma paixão barata. Enlouqueci. Meu mundo ficou de cabeça para baixo. Fui louca desvairada. Estraguei minha vida. Hoje percebo como fantasias podem nos trair. Troquei uma vida de verdade, com construção de uma longa história, pelas nuvens que voam e se perdem no horizonte. Devia estar muito carente. Só pode ter sido isso. Perdi Miguel por minha  absoluta falta de maturidade. Imaginava uma vida irreal. Só em contos de fadas. Devo ter regredido aos  meus quinze anos. Falta de chão total. Encarando a relação, constatei que o Fábio que eu imaginava, simplesmente não existia. Era uma farsa. Um carente e mal resolvido que mais parecia uma criança. Não sabia nem o que queria da vida. Bem feito pra mim. Essa realidade surgiu muito rápido. Magoei o meu amor. Até o fim Miguel sempre confirmou seu amor por mim. Se arrependimento matasse!  Aquela cena da janela despertou uma chama esquecida. Senti “inveja do casal de velhinhos!” Saí do chuveiro, me enrolei na toalha pré aquecida, com uma séria decisão. Será? Arrisquei. Fiquei rindo atoa. “MIGUEL ESTAVA COM MUITAS SAUDADES DA  NOSSA SOPA”!

26 comentários em “JANELA DOS FUNDOS! (CUMPLICIDADE).”

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