Lauro, meu papagaio, está presente há uns bons anos em minha vida. Companheirão amado e fiel. Noutro dia, estava na sala, tranquila, focada, assistindo a uma reportagem especial que falava sobre a importância da educação na formação do caráter nas pessoas. Compenetrada, ouvia o especialista explicar que o caráter é construído através de hábitos, orientações e contatos que fazem parte da experiência individual. Ressaltava que as atitudes revelam a pessoa, traduz como ela funciona. Falava, também, como a primeira infância é uma fase fundamental na formação do caráter, ressaltando também a adolescência onde se revive o Édipo. Eu já tinha lido algo a respeito, mas, os detalhes estavam atualizando a minha curiosidade. O especialista falava de uma forma motivadora e fácil sobre o significado emocional das construções internas. Fui acompanhando esses temas importantes. Trouxe temas da psicologia sobre o desenvolvimento do psiquismo humano, como funcionam os bloqueios emocionais e a forma como se refletem na formação do caráter. Doutor Pedro, ressaltou ainda, a importância do contato afetivo e do contato do amor dos pais em relação a criança. Como esses aspectos podem auxiliar na construção de uma pessoa saudável e equilibrada. (Priorizar a qualidade do contato). Durante pausa de quinze minutos, aproveitei e fui até a cozinha tomar um chá verde, bem quentinho. Caiu tão bem! Saboreando, sentei-me na cadeira de madeira entalhada, pertinho da janela. Inspirei o perfume dos jasmins vindo do quintal. Delícia! Inspirei fundo. Sentindo ainda mais o delicioso aroma. Começo a refletir sobre todos os assuntos pautados naquela reportagem. Não sei porque, lembrei, de repente, da história de Maria Eduarda, ex-aluna, muito querida, com sérios problemas emocionais. Lembrei- me de seus olhinhos tristes, pedintes de amor. “Cruel, criança sofrer”! Queria muito vê-la feliz como seus colegas de classe. Doía muito perceber angústia em seu olhar infantil. Meu instinto protetor ficou aguçado. Busquei contato com ela. Fui me aproximando de sutilmente de Maria Eduarda. Queria conquistar sua confiança. Busquei me aproximar de sua família. Fiz tudo que pude! Eduarda fazia parte da primeira turminha com qual eu tinha o compromisso de instruí-las e mostrar o quanto possível, como a vida pode ser bela! Tornar-me professora foi um sonho desde criança. Logo que me formei em pedagogia, consegui essa primeira classe. Lá havia lindos pares de olhos curiosos, me esperando. Alunos entre cinco e seis anos de idade. Apaixonada, nem sentia o tempo passar. Adorava lidar com aquelas energias cristalinas. Quinze energias. Meninos e meninas. Na calma daquela noite, ali sentada, tomando meu chá, as informações transmitidas na reportagem, trouxeram a presença de Eduarda muito viva em minha mente. Relacionei instintivamente, o que tinha entendido sobre os conceitos de psicologia com a história de carência afetiva da minha menina. Encaixava perfeitamente no caso dela. Menina triste e delicada, sensível e muito carente. Dona de uma criatividade incrível. Sabia construir através de seus desenhos, historias fortes e simbólicas, com personagens singulares. Fechada em si mesma! Não interagia com coleguinhas. Nas tarefas em grupo não participava. Preferia estar só em seu mundo imaginário. Nasceu um carinho muito grande entre nós. “Minha criança interna identificou-se com Eduarda”. Eu era a única companhia com quem ela se expressava. Demonstrava sentir-se acolhida e segura. Seus olhinhos quase negros, mostravam um brilho incomum sempre que estávamos próximas. Certo dia, um fato transformador mudou rumos! Envolvida com a criançada, bem na hora do lanche, enquanto todas corriam e brincavam, notei Eduarda sozinha num cantinho do pátio. Cabisbaixa! Fui até ela apressadamente. Segurei suas mãozinhas, frias e úmidas. Muito pálida. Esse quadro me preocupou. Segurei-a no colo, apreensiva. Imediatamente chamei nosso medico de plantão. Depois da avaliação criteriosa, foi constatado que era um quadro apenas de fundo emocional. Muita ansiedade naquela criança! De certa forma, fiquei mais tranquila. Resolvi chamar seus pais para uma reunião. Insisti que fossem eles próprios e não a babá como sua mãe propôs. ( Para ela babá representava a mãe em tudo). Busquei conhecer toda a história na intimidade de seu lar. Constatei que seu ambiente familiar era excessivamente frio. Sem contato. “Pais ausentes”. Quem cuidava dela eram babás temporárias que viviam se revezando. Soube que a mãe de Eduarda não hesitava em despedir funcionárias por motivo banais. Nenhuma delas podia fazer qualquer comentário sobre carência e necessidades de Eduarda. “Doutora Fernanda”, mãe, de Eduarda, dava tudo a filha, menos amor. Em sua visão, babá tinha que suprir qualquer necessidade da criança. ” Para isso era bem remunerada”. Rígida e prática, detestava mi mi mi! Vivia enfronhada em sua promissora profissão de cirurgiã plástica, congressos e muito trabalho hospitalar. Encontros a noite com amigos, ocupava o resto do tempo. Seu marido também cirurgião, acompanhava a mulher em tudo. Viviam como namorados! Normalmente quando chegavam em casa tarde da noite, Eduarda já dormia. A coordenação da escola, convocou uma reunião com os pais de Eduarda. Foi produtiva! Conseguiu derreter um pouco do gelo da “doutora Fernanda”. Mencionei situações e fatos ocorridos na escola que ela ignorava. Demonstrou surpresa. Certa indignação! Na cabeça dela aquilo era inusitado. Não podia ter acontecido! Não se considerava uma mãe negligente. Depois de longas conversas, nossa psicóloga sugeriu psicoterapia. Fernanda, surpreendentemente, resolveu tentar. Iniciou terapia familiar e individual. Foi o momento transformador na vida de Eduarda. O tempo passou. O ano escolar terminou. Sutis mudanças no comportamento de Eduarda. No ano seguinte, chegou com sorriso mais aberto, interagindo mais com as outras crianças. Maior viço no olhar. “As coisas foram se reestruturando”. Fernanda está se descobrindo como mãe. (O Caminho do auto conhecimento pode ser a cura dos males do coração)! Hoje, sempre que Eduarda me encontra no pátio, nos intervalos, ganho um abraço quente. Apertado, apertado. E seu beijo? Envolvida nessas sensações, distraída, tomando o último gole de meu chá, ouço voz estridente:- “LOLITA, LOLITA. LOURO QUER CAFÉ”!